Prof. Júlio César Medeiros

PROFESSOR DE HISTÓRIA

juliocesarpereira@id.uff.br

SOBRE

Júlio César Medeiros é Dr. em História da Ciência e da Saúde pela Fiocruz.  É professor de História Contemporânea com enfase em África, da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos e Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa SANKOFA-UFF.

 

Cidadãos apáticos ou apenas excluídos do poder?

RESENHA

Por: Pollyana Feitosa – Aluna do 5° Período de História, Universidde Federal Fluminense.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras. [3ª ed., 2001.]

         O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho nasceu em Andrelândia, Minas Gerais, no dia 8 de setembro de 1939. Graduou-se em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1965. Obteve seu mestrado e doutorado em ciências políticas na universidade de Stanford, com tese sobre  o Império brasileiro. Foi eleito para a Academia Brasileira de Ciências em 2003 e para a Academia Brasileira de Letras em 2004, tendo organizado e publicado 19 livros e mais de 100 artigos científicos. Suas pesquisas se concentram no Brasil Império e Primeira República, com destaque nos assuntos sobre a construção da cidadania brasileira e republicanismo ressaltando as suas especificidades. Suas principais obras são: A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial publicado em 1980; Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987); Teatro de sombras: A Política Imperial (1988); A formação das almas: O Imaginário da República no Brasil (1990). Em sua trajetória acadêmica ele recebeu cerca de 12 prêmios e medalhas, dentre eles o prêmio Jabuti de ciências sociais.

Capa do livro

Os bestializados e a república que não foi, livro objeto desta resenha, se tornou um clássico da historiografia brasileira, no qual o autor analisa o quadro de instauração do novo regime, a República. Vale a pena ressaltar, que o livro é dividido em cinco capítulos, 196 páginas e um interessante caderno de fotos ao final mostrando a visão da época. A escolha do autor de trazer estas ilustrações enriquecem a leitura e proporciona ao leitor uma experiência de imersão naquela realidade. Desse modo, o objetivo desta resenha é fazer um panorama dos capítulos e ressaltar a importância desta obra para a historiografia, seus engajamentos e metodologia.

Na introdução,  o autor deixa evidente que vai debruçar-se sob a cidade do Rio de Janeiro, delimitando o seu recorte temporal que vai da transição do Império para a República, chegando  até o governo de Rodrigues Alves. Ao discorrer da leitura, percebe-se que o autor dialoga com diversos intelectuais, isto por sua vez, também compõe a sua narrativa onde o autor evidencia a percepção que essas atores sociais tinham acerca do povo.

Logo no início do texto, Carvalho destaca uma frase dita pelo médico residente do Brasil, Loius Couty, que ao analisar a situação sociopolítica da população brasileira,  concluiu: “o Brasil não tem povo”. Carvalho ressalta que essa frase pode ser consequência de uma distorção elitista e de um etnocentrismo francês, pois a partir da Visão de Couty, fica subentendido que o povo brasileiro não tinha qualquer consciência política e alheio às transformações sociais que ocorriam naquele tempo. Portanto, o objetivo do autor é tentar o de tecer uma reflexão sobre a prática da cidadania no Brasil República.  

No primeiro capítulo, O Rio de Janeiro e a República, o autor explica que o objetivo dele é tentar descrever sumariamente a natureza das mudanças de transformações econômicas, sociais, política e cultural, e examinar as suas consequências para a vida dos fluminenses, enfatizando o impacto do novo regime, que de certa forma, estava ancorado na opinião pública. Carvalho analisa, portanto, dados de crescimento populacional, aumento do número de imigrantes, sobretudo portugueses, e as condições nas quais estes  trabalhadores tiveram que conviver e se adaptarem às novas condições de vida, baixos salários, falta de moradia, escassez de empregos, saneamento básico etc. Outro ponto importante levantado neste capítulo e que a historiadora Cidinha Brito ressalta em sua análise, é a questão da “Febre especulativa”

(…) após a abolição surgiram muitos problemas econômicos que, contribuíram para uma “febre especulativa”. Desde o império, vinha sendo emitido dinheiro para pagamento de salários, que agora os cafeicultores tinham que dispor. […] “por dois anos, o novo regime pareceu uma autêntica república de banqueiros, onde a lei era enriquecer a todo custo com dinheiro de especulação” (pág. 20). A inflação, a queda do câmbio, o aumento da imigração fez aumentar o custo de vida, além dos preços altos, os moradores da cidade do rio tinham de lidar com a constante disputa por trabalho, o que foi a causa do surgimento do movimento jacobino em 1898. (Cidinha Brito, 2016.)

No capítulo seguinte, República e Cidadania, o autor ressalta que o fim do Império e o início da República foi uma época caracterizada por uma grande movimentação no campo das ideias, que em geral foram importadas da Europa, gerando, portanto, uma grande confusão ideológica, tendo em vista que essas ideias na maioria das vezes eram mal absorvidas ou de certo modo incorporadas de forma seletiva. Carvalho aponta neste capítulo para o conceito de povo, sua existência, e o fato de ter sido útil na instrumentalização da atuação política em alguns setores que lutavam pela ampliação da cidadania. Nele, o autor analisa, ainda, os conservadores e os anarquistas.

No capítulo  Cidadãos inativos: a abstenção eleitoral,  Carvalho inicia o texto com abordando um ponto chave para o entendimento do contexto da época, ele destaca que a efervescência ideológica nos períodos iniciais da República e as conflitantes propostas de cidadania apontavam tanto para a insatisfação com o passado, quanto para uma incerteza em relação ao futuro. Não há dúvidas de que o comportamento político brasileiro era visto como apático, porém o autor chama a atenção da necessidade de se ter cuidado, evitando uma análise apressada que, sem uma visão crítica, tome a fala da elite como verdade.  O fato é que os estrangeiros buscavam no Brasil um cidadão ao estilo europeu, e se frustraram ao ver que o povo fluminense não se encaixava nos moldes eurocêntricos.   

Bonde virado por manifestantes durante a Revolta, em 1910.

No capítulo Cidadãos ativos: a Revolta da vacina, talvez o mais conhecido e citado dentre todo o livro, o objetivo do autor é tentar capturar o que seria a concepção dos direitos e deveres nas relações entre indivíduo e Estado, analisando a maior participação popular, a Revolta da Vacina, esclarecendo a composição popular insurgente e as suas motivações. Carvalho apresenta então o contexto social do Rio de Janeiro; as reformas urbanas; as obras públicas; a questão do saneamento básico e a polêmica da implementação da vacina obrigatória contra a varíola cunhado pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz, que, por ser obrigatórias gerou grande  agitação popular. Neste momento, com maestria, Carvalho, descreve ao leitor o que aconteceu durante a Revolta, dia após dia,  com riquezas de detalhes que reconstroem um cenário social caoticamente conturbado, e ressalta: “O mais importante era mostrar ao governo que ele não põe o pé no pescoço do povo”. (Carvalho, 2001:193).

No último capítulo, Bestializados ou bilontras? Carvalho ressalta que, evidentemente, havia algo no comportamento popular que ia de forma contrária ao modelo e expectativa dos reformistas tanto da elite quanto da classe operária, a ideia de cidadão ativo consciente de seus direitos e deveres capaz de organizar-se entre si. O autor salienta que o espírito associativo se manifestava nas sociedades religiosas e de auxílio mútuo, nas grandes festas onde a população entendia-se como uma comunidade. Em contrapartida, no âmbito da política a cidade não se reconhecia, segundo ele o citadino não era cidadão, portanto era inexistente a comunidade política o que explica a apatia do povo perante o Estado.

“No entanto, o povo não se envia politicamente, o poder não lhes fazia sentido nenhum, não levavam a república a sério. para eles, ‘o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação’. Ao contrário do “quadro pintado” por Aristides Lobo ‘quem apenas assistia, como fazia o povo do rio por ocasião das grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado era bilontra’.”

(Cidinha Brito, 2016.)

Desse modo, Carvalho conclui retomando a discussão iniciada no início, em torno dos seguintes temas e suas interrelações:  o regime político; a  cidade; e a cidadania. Explica também que, a relação da república com a cidade só serviu para agravar o “divorcio” entre as duas e a cidadania. Para a maioria dos cidadãos o poder permanecia fora do alcance, e por isto o povo parecia um mero figurante nestas questões. Neste sentido, a partir do impedimento de ser ou fazer parte desta República, o povo formou várias repúblicas através das associações, instituições e manifestações sociais construído assim a sua própria identidade coletiva. 

À guisa de conclusão, podemos dizer que as fontes utilizadas pelo historiador são claras e o seu uso consistente, demonstra o seu vasto repertório. Seus argumentos e as suas análises são construídas de forma muito bem estruturada e os capítulos sempre se complementam. O autor faz uso de uma vasta fonte bibliográfica, além do uso de um vasto acervo documental. 

De modo geral, apesar de ter seu trabalho reconhecido no meio acadêmico e um constar entre os clássicos da Historiografia, ele pode e deve ser lido  pelo grande público, que encontrará uma linguagem clara e inteligente se tornando uma leitura obrigatória para todos os que quiserem entender o que foi a República que não foi.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Companhia das Letras. [3ª ed., 2001.]

E. P. Thompson, “Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional”, Companhia das Letras, 1998.

E. P. Thompson, “A história vista de baixo”, Editora da Unicamp, 2001

Sites

BRITO, Cidinha. Livro de José Murilo de Carvalho destaca o fato da instauração do novo regime ter passado despercebido pela sociedade da época. Biblioo cultura informacional, 2016. Disponível em: https://biblioo.info/os-bestializados-rio-de-janeiro-e-a-republica-que-nao-foi . Acesso em 30 ago. 2021.

CARVALHO, José Murilo de. A nova historiografia e o imaginário da República. Revista do programa de Pós-Graduação em história, 1993. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/anos90/issue/view/599 . Acesso em 30 ago. 2021.

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