Por Prof. Dr. Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Quando escrevi À Flor da Terra, eu não imaginava que aquele trabalho — nascido de uma pesquisa de mestrado, orientada pelo professor José Murilo de Carvalho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro — se tornaria parte da memória pública da cidade. O livro nasceu de uma inquietação profunda: o que diz de nós uma sociedade que enterra seus mortos às pressas e tenta apagar seus rastros?
O Cemitério dos Pretos Novos, localizado na Gamboa, era mais que um espaço de sepultamento. Era o espelho de uma cidade que crescia sobre corpos africanos. Ali, entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, foram lançados milhares de homens, mulheres e crianças arrancados do continente africano, vítimas do tráfico transatlântico e das violências do cativeiro.
Ao pesquisar os registros de óbitos da freguesia de Santa Rita e cruzá-los com as listas de embarcações negreiras, percebi que não estava apenas lidando com números — mas com histórias interrompidas. O livro tenta dar nome e voz a esses corpos que a história oficial silenciou. Foi esse esforço de escuta e de restituição simbólica que fez o trabalho receber o Prêmio Laurindo Marques, concedido pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, como a melhor dissertação de mestrado de 2005.
A primeira edição, publicada em 2007 pela Editora Garamond, nasceu desse reconhecimento. A segunda, de 2014, ampliou o diálogo entre arqueologia, saúde pública e memória. E a terceira edição, publicada em 2025 pela Letra Capital, revisita esse percurso à luz das discussões contemporâneas sobre racismo estrutural, necropolítica e patrimônio afro-brasileiro.
Escrevi À Flor da Terra com a convicção de que o Cemitério dos Pretos Novos não é apenas um sítio arqueológico, mas um lugar de consciência. Ele nos obriga a encarar o que preferimos esquecer: que o Brasil foi construído sobre a desumanização de corpos negros, e que a cidade do Rio de Janeiro — tão celebrada por sua beleza — ergueu-se também sobre o sofrimento de milhares de africanos anônimos.
Acredito que as pessoas devem conhecer este trabalho porque ele fala de nós. Fala da história que sustentamos com silêncio, mas também da força de quem resistiu. À Flor da Terra é, antes de tudo, uma tentativa de ouvir o que os mortos ainda têm a dizer sobre o país que somos e o que ainda podemos ser.
Revisitar esse livro é revisitar o chão que pisamos — e lembrar que, sob ele, há vidas que insistem em florescer.
Referência:
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2025.