Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 07 out 2025
Por Prof. Dr. Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Quando escrevi À Flor da Terra, eu não imaginava que aquele trabalho — nascido de uma pesquisa de mestrado, orientada pelo professor José Murilo de Carvalho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro — se tornaria parte da memória pública da cidade. O livro nasceu de uma inquietação profunda: o que diz de nós uma sociedade que enterra seus mortos às pressas e tenta apagar seus rastros?
O Cemitério dos Pretos Novos, localizado na Gamboa, era mais que um espaço de sepultamento. Era o espelho de uma cidade que crescia sobre corpos africanos. Ali, entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, foram lançados milhares de homens, mulheres e crianças arrancados do continente africano, vítimas do tráfico transatlântico e das violências do cativeiro.
Ao pesquisar os registros de óbitos da freguesia de Santa Rita e cruzá-los com as listas de embarcações negreiras, percebi que não estava apenas lidando com números — mas com histórias interrompidas. O livro tenta dar nome e voz a esses corpos que a história oficial silenciou. Foi esse esforço de escuta e de restituição simbólica que fez o trabalho receber o Prêmio Laurindo Marques, concedido pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, como a melhor dissertação de mestrado de 2005.
A primeira edição, publicada em 2007 pela Editora Garamond, nasceu desse reconhecimento. A segunda, de 2014, ampliou o diálogo entre arqueologia, saúde pública e memória. E a terceira edição, publicada em 2025 pela Letra Capital, revisita esse percurso à luz das discussões contemporâneas sobre racismo estrutural, necropolítica e patrimônio afro-brasileiro.
Escrevi À Flor da Terra com a convicção de que o Cemitério dos Pretos Novos não é apenas um sítio arqueológico, mas um lugar de consciência. Ele nos obriga a encarar o que preferimos esquecer: que o Brasil foi construído sobre a desumanização de corpos negros, e que a cidade do Rio de Janeiro — tão celebrada por sua beleza — ergueu-se também sobre o sofrimento de milhares de africanos anônimos.
Acredito que as pessoas devem conhecer este trabalho porque ele fala de nós. Fala da história que sustentamos com silêncio, mas também da força de quem resistiu. À Flor da Terra é, antes de tudo, uma tentativa de ouvir o que os mortos ainda têm a dizer sobre o país que somos e o que ainda podemos ser.
Revisitar esse livro é revisitar o chão que pisamos — e lembrar que, sob ele, há vidas que insistem em florescer.
Referência:
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À Flor da Terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2025.
Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 01 mar 2025
“No Carnaval de 2025, a Estação Primeira de Mangueira apresenta, na Marquês de Sapucaí, um enredo que mergulha na história e na resistência do povo negro no Brasil. Com o título “À Flor da Terra – no Rio da Negritude entre Dores e Paixões”, a escola de samba vai contar a narrativa retratada no livro À flor da terra: o cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, do professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), Júlio César Medeiros da S. Pereira. A obra, fruto de uma extensa pesquisa acadêmica, aborda a memória do Cemitério dos Pretos Novos, local onde escravizados eram enterrados de forma precária, “à flor da terra”, refletindo a desumanização e o descaso da época.
O enredo, idealizado pelo carnavalesco Sidnei França, estreante no Carnaval carioca, promove uma reflexão sobre o apagamento e a invisibilidade do povo preto desde a chegada dos escravizados ao Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. França, que acumula cinco títulos em São Paulo, optou por explorar as influências dos povos bantos na cultura brasileira, ao dar destaque à sua contribuição para a formação sociocultural do Rio de Janeiro.
A pesquisa de Pereira, que serviu de base para o enredo, revisita uma das páginas mais sombrias da história do Brasil e investiga as práticas de sepultamento dos escravizados africanos recém-chegados ao país entre 1722 e 1830. O trabalho, originalmente uma dissertação de mestrado, utiliza documentos históricos como livros de óbitos, relatos de viajantes, jornais da época e dados arqueológicos para reconstruir a história desse local de memória e dor.
O Cemitério dos Pretos Novos foi criado exclusivamente para enterrar escravizados que morriam logo após a chegada ao Brasil, antes de serem vendidos no Valongo. Funcionou inicialmente no Largo de Santa Rita, no centro do Rio, e depois foi transferido para o Valongo, região portuária da cidade, por ordem do vice-rei Marquês do Lavradio. O local, que operou de 1774 a 1830, era marcado pela desumanização: os corpos eram enterrados de forma precária, “à flor da terra”, ou seja, eram deixados ao solo sem sepultamento, ritual religioso ou qualquer respeito pelos mortos. Os que eram sepultados, eram esquecidos nus, envoltos em esteiras, em valas comuns.
A pesquisa de Medeiros destaca que o aumento do tráfico negreiro no início do século XIX levou a uma superlotação do cemitério. “Entre 1824 e 1830, mais de seis mil escravizados foram enterrados no local, mas se levarmos em conta desde a sua fundação, em 1774 até 1830, seriam mais de vinte mil sepultamentos. O fechamento do cemitério em 1830 coincidiu com o tratado de extinção do tráfico de escravos, assinado com a Inglaterra. No entanto, a prática de sepultamentos precários continuou em outros locais”.
Ainda segundo o professor, “a localização do Cemitério dos Pretos Novos foi perdida, até que em 1996, na Rua Pedro Ernesto, 35. (Antiga rua do Cemitério), o casal Mercedes e Petrúcio, descobriram as ossadas, ao fazerem a reforma do imóvel recém-adquirido. Ali estava o cemitério de escravizados esquecidos, os quais nunca tiveram seus corpos devidamente sepultados.”
A análise da violência cultural praticada no Cemitério dos Pretos Novos é um dos pontos-chave do livro. O professor explora como as práticas de sepultamento desrespeitavam tanto as tradições católicas quanto as crenças bantos, predominantes entre os escravizados. “Na cultura banto, os rituais fúnebres eram essenciais para garantir que os mortos se integrassem ao mundo dos ancestrais. A falta desses rituais transformava os mortos em ‘desgarrados’, espíritos que atormentariam os vivos. Para os escravizados, essa violência simbólica somava-se ao trauma da escravização e do desenraizamento.”, explica o autor.
Imagem oficial do carnaval 2025 da Mangueira — Foto: Divulgação
O estudo também revela a relação do cemitério com a cidade do Rio de Janeiro. Com isso, a Mangueira, conhecida por seus enredos que abordam temas sociais e históricos, promete transformar a Sapucaí não só em um palco de celebração, mas também de reflexão. O desfile vai explorar as dores e paixões que permeiam a vivência da população negra no Rio de Janeiro, destacando a luta contra o apagamento histórico e a busca por reconhecimento e igualdade.
O que antes era cemitério, hoje é o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, um sítio arqueológico, fruto de esforços de preservação e valorização da memória negra no Rio de Janeiro, do casal Mercedes e Petruchio e diversos pesquisadores que se juntaram a eles em prol da causa. A pesquisa de Pereira ilumina um capítulo pouco conhecido da história brasileira e contribui para a luta contra o apagamento da identidade e da cultura afro-brasileira. Em 2025, essa história será levada à Sapucaí pela Mangueira, em um desfile que promete emocionar e conscientizar o público sobre a importância de resgatar essas memórias.”
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Júlio César Medeiros da Silva Pereira é Doutor em História da Ciência e da Saúde pela Fiocruz. É professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos e Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa SANKOFA-UFF.