Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 11 dez 2024
O Bloco Carnavalesco Filhos de Gandhi apresenta, com orgulho, como temática para o carnaval de 2025 a emblemática Revolta dos Malês, um marco indelével da resistência negra no Brasil, que ecoa até os dias de hoje. O desfile deste ano não se limita a celebrar a história de luta e bravura dos africanos muçulmanos que se insurgiram contra a opressão escravista; é um tributo à memória daqueles que, com coragem e fé, desafiaram o sistema que os aprisionava.
Em um ritmo pulsa que vibra nas batidas da nossa ancestralidade, o enredo traça paralelos entre luta pela liberdade, pela preservação cultural e espiritual da época e os desafios que o próprio bloco, bem como o nosso povo preto tem enfrentado em uma sociedade cada vez mais injusta. Cada passo dado na avenida reverberará a luta contínua pela dignidade e pelo reconhecimento, enquanto a história se entrelaça com o presente, nos lembrando que, o apagamento histórico social não passará incólume diante da nossa manifestação cultural.
Através dessa escolha temática, o Bloco Filhos de Gandhi reafirma seu compromisso em manter viva a chama da herança afro-brasileira, um fogo que brilha intensamente em meio às intempéries e obstáculos que as organizações que defendem a cultura popular, especialmente a de nosso povo negro, enfrentam. Em cada canto, em cada sorriso, se revela a força de um legado que se recusa a ser silenciado, um eco de resistência que se levanta contra o esquecimento, prometendo que a luta por justiça e liberdade nunca cessará.
Neste carnaval, ao desfilarem, os integrantes do Bloco Filhos de Gandhi não apenas celebram um passado glorioso, mas também escrevem novas páginas na história, relembrando que a resistência é uma herança que transcende gerações e que o legado dos Malês vive nas veias de cada um que se levanta, unindo-se em um só grito de liberdade e esperança.
Fundado em meio ao contexto cultural da Pequena África, o Bloco Afoxé Filhos de Gandhi possui uma trajetória marcada pela resistência e preservação da memória ancestrálica, o que o torna um guardião das tradições africanas em território carioca. O enredo de 2025 busca homenagear a Revolta dos Malês, revisitando a história de africanos muçulmanos, originários de sociedades islâmicas da África Ocidental, que foram trazidos ao Brasil pelo infame comércio do tráfico negreiro. Esses homens e mulheres, conhecidos por sua profunda fé e organização social, mantinham práticas religiosas, como a leitura do Alcorão e o uso do árabe como idioma de resistência, que se tornaram centrais para a organização da insurreição.
A escolha desse tema para o desfile de 2025 reflete a própria história do Bloco Afoxé Filhos de Gandhi, que, tal como os Malês, luta pela preservação de sua identidade cultural em meio a adversidades. Assim como os Malês enfrentaram o apagamento de suas práticas culturais e religiosas sob o jugo da escravidão, o bloco Afoxé Filhos de Gandhi inspirado no Ijexá Filhos de Gandhy, bloco carnavalesco criado em Salvador, dois anos antes e que se apresentava tocando o ijexá, e entoando na língua iorubá, iniciou sua organização em torno de componentes que moravam afastados do perímetro urbano, provenientes das camadas mais pobres e subalternizadas da população. Seus integrantes moravam majoritariamente em bairros afastados da área central da cidade, sobtudo, oriundos das camadas populares mais pobres e marginalizadas da população carioca que, enfrentaram sucessivos processo de apagamento histórico, tal como os escravizados Malês, com garra e resistência.
A Revolta dos Malês, um levante minuciosamente planejado e inspirado pos escravizados islâmicos, demonstrou o poder de uma comunidade organizada em torno de sua identidade cultural e espiritual. “malês” que no idioma Iorubá significa muçulmano, contava com cerca de 600 africanos escravizados, cujos lideres Ahuna; Dassalu; Gustar; Pacífico Licutan; Sule ou Nicobé; Manoel Calafete (escravizado liberto); Elesbão do Carmo e Luís Sanim; haviam combinado para que a revolta se desse no final do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos que marcava “Lailat al-Qadr”, a festa da Noite da Glória — ocasião que entrou para a história como o dia da revelação do Corão a para Muhammad (Maomé), o profeta do islamismo.
Organizados em torno de seus ideais de liberdade, irrompeu na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, como um clamor audacioso contra a opressão escravagista, tragicamente frustrado quando a trama de seus protagonistas foi denunciada, fazendo desmoronar todo um plano cuidadosamente elaborado. Esses valentes escravizados urbanos, que desfrutavam de uma relativa liberdade de locomoção, sonharam com um futuro onde poderiam resgatar e preservar sua dignidade e identidade.
O espírito islâmico permeava a revolta, manifestando-se nos abadás brancos que adornavam os corpos dos revoltosos, um traje emblemático da tradição muçulmana. Muitos deles traziam consigo amuletos que continham passagens do Alcorão escritas em árabe, objetos que acreditavam conferir-lhes proteção contra os horrores da repressão. Assim, cada elemento da vestimenta e cada amuleto carregavam a esperança de um renascimento cultural e espiritual.
As ruas de Salvador se tornaram o palco de intensos combates, que ecoaram por horas a fio, onde a bravura e a determinação desses africanos se confrontaram com a brutalidade das forças opressoras. O trágico resultado levou à morte de 70 homens e mulheres que lutavam por suas vidas e liberdade, além de nove integrantes das forças que se opuseram a eles. A batalha final ocorreu em um local marcado pela história, conhecido como Água de Meninos, onde muitos, encurralados, buscaram a salvação nas águas do mar, apenas para encontrarem a morte em suas profundezas.
A Revolta dos Malês, mesmo em seu trágico fracasso, é um testemunho da coragem e do anseio por liberdade, uma chama que ainda ressoa nas almas de todos aqueles que lutam contra a opressão e pela dignidade.
As punições desferidas contra os envolvidos na Revolta dos Malês foram implacáveis, estendendo-se até mesmo aos libertos que, de alguma forma, não participaram da insurreição. Os castigos foram severos e implacáveis: prisão, açoites, deportação e execução tornaram-se o trágico destino dos revoltosos. Quatro deles, Jorge da Cruz Barbosa (Ajahi), Pedro, Gonçalo e Joaquim, foram condenados à morte e executados por fuzilamento, símbolos da coragem que se ergueu contra a opressão, mas que encontrou na brutalidade do sistema escravista, sua cruel punição. Jamais o poder instituído deixaria passar em branco, os pretos africanos e crioulos que ousavam sonhar com a tão desejada liberdade.
Esse levante ousado, embora tenha sido reprimido, contribuiu para intensificar a repressão sobre a população de escravizados e libertos em Salvador, gerando um clima de medo e desconfiança. Uma lei aprovada naquele ano determinava que todos os africanos e descendentes suspeitos de envolvimento em revoltas seriam deportados de volta ao continente africano. Estatísticas revelaram que milhares de negros foram enviados de volta à África, uma ação que revelava o desespero dos senhores de escravos diante da possibilidade de uma revolução que ecoasse os ecos da Revolução Haitiana.
Imbuídos deste mesmo espirito de luta, o Bloco Afoxé Filhos de Gandhi se ergue anualmente, dançando nas ruas da Pequena África, onde a memória ancestral pulsa com força. Em meio a adversidades, reafirma seu compromisso com a herança cultural e entoa um poderoso canto de liberdade. O enredo de 2025, ao lembrar a coragem indomável dos Malês, exalta a importância da transmissão cultural e da organização do povo preto, como faróis de resistência que iluminam o caminho em tempos de incertezas.
Como os Malês, que mantiveram viva sua fé e identidade em meio à opressão, o bloco reverencia, com seus atabaques e tamborins, a ancestralidade africana e suas diversas manifestações. Ele resiste ao apagamento cultural, enfrentando o peso do tempo e os desafios econômicos, transformando cada nota musical em um ato de afirmação.
O desfile de 2025 promete ser uma celebração da resiliência cultural, um hino à bravura. Tal como os Malês enfrentaram a repressão colonial com coragem e união, o bloco, em sua trajetória pelas vibrantes ruas do Rio de Janeiro, carrega o legado de resistência, desafiando a invisibilidade social e os obstáculos estruturais que tentam silenciá-lo.
Em cada batida de tambor e em cada marcação do surdo tocado, em cada canto entoado, o bloco será a voz dos Malês revividos, cuja memória jamais será esquecida e, em seu ritmo imponente, lembrando todos os agentes do apagamento histórico sofrido pelo povo negro, que o Haiti ainda é logo ali. O povo preto, agora se organiza, se levanta e luta. Salta o canto na avenida e reafirma o seu lugar de direito na sociedade e na história.
Autor: Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Prof. Dr. em História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense e pesquisa dos do instituto de Memória e Pesquisa Pretos Novos.
Membro do Comitê Cientifico do Cais do Valongo
Membro do Comitê Consultivo do Memorial Mãos Negras (Jardim Botânico)
Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 03 nov 2024
A história do Brasil está marcada pela resistência e pela luta das populações afrodescendentes. Durante o mês da Consciência Negra, é fundamental trazer à tona memórias de lugares que simbolizam essa trajetória de força e perseverança, como o Cais do Valongo e a Pequena África. Esses locais representam capítulos dolorosos, mas essenciais, de nossa história e são cruciais para a construção da identidade afro-brasileira. A série “Ainda à Flor da Terra: do Valongo à Pequena África, memórias, resistência e legado” busca resgatar essa história, reforçando o compromisso com o reconhecimento e a valorização dessas memórias.
O Valongo e a Pequena África são símbolos da resistência e da resiliência da população negra no Brasil. O Valongo, principal porto de desembarque de africanos escravizados no Brasil, e a Pequena África, um centro cultural e social vibrante que surgiu na região do Valongo, conta histórias que moldaram a formação da identidade afro-brasileira. Conhecer esses locais é essencial para compreendermos o impacto do passado escravocrata e a luta pela igualdade que ainda persiste. Neste artigo, exploraremos a importância histórica e cultural do Valongo e da Pequena África, discutindo como esses lugares representam não apenas marcos físicos, mas também símbolos de resistência.
O que foi o Valongo?
O Valongo, localizado no Rio de Janeiro, foi o principal ponto de desembarque de africanos escravizados no Brasil, funcionando entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Estima-se que milhoes de africanos chegaram ao Brasil através do Valongo, um número que representa aproximadamente 60% de todos os africanos escravizados trazidos ao país. Esse local serviu como palco de sofrimento, onde os seres humanos eram tratados como bens e separados de suas famílias, línguas e culturas.
O Cemitério dos Pretos Novos
O Cemitério dos Pretos Novos, localizado na região do Valongo, é um marco trágico da escravidão. Inaugurado no século XVIII, o cemitério foi o local de sepultamento de milhares de africanos recém-chegados que não resistiam às condições precárias da travessia e da escravidão. Muitos foram enterrados sem identificação e sem rituais fúnebres, revelando a brutalidade do sistema escravocrata. A presença do cemitério, tema central do meu livro À Flor da Terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, é um lembrete do sofrimento e da resiliência da população afro-brasileira.
A Pequena África
Com o passar do tempo, a área ao redor do Valongo tornou-se um centro cultural conhecido como Pequena África. Nessa região, africanos livres e seus descendentes realizaram um espaço onde as tradições africanas encontraram um solo fértil para florescer e se misturar com elementos das culturas indígenas e europeias. A Pequena África tornou-se famosa pela sua diversidade cultural, abrigando manifestações de música, dança e culinária que definem a cultura afro-brasileira até hoje.
Impacto Social e Econômico
O Valongo foi um dos pilares da economia do Rio de Janeiro colonial, mas, ao mesmo tempo, moldou profundamente a demografia da cidade, contribuindo para a formação de uma comunidade afro-brasileira vibrante. A presença negra transformou o ambiente cultural da cidade, influenciando a sociedade carioca e brasileira de forma ampla.
Memória Histórica
O Valongo é um símbolo da resistência e da luta por dignidade. Ao preservarmos essa memória, reforçamos a necessidade de refletir sobre a história da escravidão e as desigualdades que ela perpetuou. Para além do Brasil, o Cais do Valongo é um marco da diáspora africana, e seu reconhecimento como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 2017 é uma homenagem à luta e à resiliência dos povos africanos e seus descendentes.
Patrimônio Cultural
O título de Patrimônio Mundial da UNESCO conferido ao Cais do Valongo destaca sua relevância para a memória coletiva da diáspora africana. Esse reconhecimento não é apenas simbólico, mas também uma forma de conscientizar sobre a importância de preservar locais históricos que carregam as marcas do sofrimento e da luta das populações negras.
O Valongo e a Pequena África representam muito mais do que apenas pontos geográficos. Eles são testemunhas da trajetória de resistência e força da população negra no Brasil. Ao reconhecer e valorizar esses locais, estamos contribuindo para a construção de uma identidade afro-brasileira que honra a memória dos antepassados e confirma as influências africanas na formação do Brasil. Mais do que lugares físicos, o Valongo e a Pequena África simbolizam uma luta contínua por direitos e dignidade, refletindo uma complexa história de escravidão e seu impacto em nossa sociedade.
Neste da Consciência Negra, revisitar e valorizar esses marcos é fundamental para lembrar que a história da escravidão não deve ser esquecida, mas sim estudos e mês estudados para que possamos caminhar rumo a um futuro mais justo e igualitário.