Prof. Júlio César Medeiros

PROFESSOR DE HISTÓRIA

juliocesarpereira@id.uff.br

SOBRE

Júlio César Medeiros é Dr. em História da Ciência e da Saúde pela Fiocruz.  É professor de História Contemporânea com enfase em África, da Universidade Federal Fluminense, pesquisador do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos e Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa SANKOFA-UFF.

 

MORTE E SOBREVIVÊNCIA


Doenças até então desconhecidas, como malária e febre amarela, dizimaram a população nativa em menos de um século, exigindo ajustes econômicos e sociais que levariam à criação de uma sociedade multiétnica no continente



por Kennet h Maxwell

Uma das consequências imprevistas do contato intercontinental e da comunicação marítima iniciada por Colombo em 1492 foi a chegada de doenças do Velho Mundo que atacaram os habitantes nativos do Novo Mundo, que não tinham imunidade. As planícies tropicais do Caribe e das Américas do Norte e do Sul sofreram um virtual despovoamento em menos de três quartos de século. O istmo do Panamá, onde os primeiros espanhóis encontraram diversos assentamentos prósperos, transformou-se virtualmente num descampado vazio e pestilento. David Browning estima que em Honduras a população anterior à conquista, de 1,2 milhão, havia caído para 18 mil em 1590. O declínio no Peru também foi grave. A população do Peru na época da chegada de Pizarro foi estimada por Noble David Cook em cerca de 9 milhões. No meio século seguinte a população diminuiu para pouco mais de 1 milhão e, em 1620, havia caído para 600 mil. A diminuição geral foi de 93% no século seguinte ao primeiro contato entre os europeus e os habitantes indígenas. A população do México, que de acordo com alguns estudiosos poderia ter chegado a 22 milhões em 1519, caíra para cerca de 1 milhão em 1600. Os historiadores demográficos pioneiros Woodrow Borah e Sherbourne Cook afirmaram que seis sétimos da população total havia sido extinta entre 1519 e 1605, de modo que por volta de 1620-25 a população indígena era de 3% do que havia sido em 1519. Embora os acadêmicos ainda discutam os números, é evidente que as primeiras décadas do assentamento europeu foram um desastre para a população indígena. A catástrofe demográfica no continente americano repetiu o padrão do Caribe, cuja população pré-colombiana estava virtualmente extinta em 1550. Mas não completamente.

Houve alterações vitais em relação à experiência caribenha. Nas terras baixas tropicais, assim como nas ilhas do Caribe, muitos grupos indígenas morreram antes de conseguir criar imunidade. Mas, nos ambientes mais elevados e frios, onde doenças africanas como a malária e a febre amarela não se disseminaram, a perda foi menos extensa, e por isso foram possíveis uma sobrevivência residual e uma eventual recuperação. Os altiplanos peruanos e bolivianos, é claro, mantêm ainda hoje uma vibrante população e cultura indígenas. O professor Noble David Cook afirma que a altitude da puna andina talvez explique em parte essa resistência. “O “soroche”, o mal-estar da altitude, normalmente afeta os habitantes de locais ao nível do mar que se aventuram nos planaltos”, ele aponta. Os indígenas dos Andes sobrevivem devido a sua grande capacidade pulmonar, uma elevada taxa de células vermelhas no sangue e um grande volume de mioglobina nos músculos. Essa forte adaptação ao ambiente não ocorria com os estrangeiros, e consequentemente os quéchuas e aimaras não foram deslocados nem se miscigenaram com os invasores. Os professores Sherbourne Cook e Woodrow Borah também demonstraram que na Mesoamérica os índices de sobrevivência entre as populações indígenas foram maiores nos planaltos que no litoral. O ponto-chave de uma perspectiva de longo prazo é o de que no interior o colapso demográfico da população indígena no hemisfério ocidental não foi total. A sobrevivência de populações indígenas é de profunda importância para o futuro da América Latina. Nas ilhas do Caribe e nas terras litorâneas, o virtual extermínio das populações indígenas foi seguido da introdução de plantações de produtos alimentares, com trabalho de escravos africanos. Uma sequência semelhante se desdobraria mais tarde no litoral do Brasil. Com efeito, ao longo do tempo ocorreu uma substituição da população. Os padrões raciais e sociais nessas regiões seriam profundamente marcados pelo desenvolvimento de plantações com mão-de-obra escrava, predominantemente de cana-de-açúcar, e influências africanas. Elas reproduziam os padrões estabelecidos no primitivo sistema afro-atlântico nas ilhas da Madeira, Cabo Verde e São Tomé e continuariam a fazê-lo até o século 19, em termos de sua participação no comércio de escravos, na agricultura monocultural voltada para a exportação e na escravidão africana. Mas nos planaltos a composição racial da população refletiu a extensão da sobrevivência ameríndia, e aqui, com o tempo, surgiria uma civilização híbrida indo-européia.

Pecuária x agricultura
Em todo o México e América Central, assim como no Caribe, a doença não foi o único fator de ruptura da sociedade indígena. O gado do Velho Mundo introduzido nas Américas pelos primeiros colonos espanhóis também competiu com a população indígena por alimento e espaço, danificando as plantações de milho e feijão e devastando as pastagens. Os animais trazidos do Velho Mundo pelos espanhóis perturbaram seriamente o equilíbrio entre a população e o suprimento alimentar, especialmente na Mesoamérica, onde o milho era o produto básico.
Depois da conquista, ocorreu uma explosão populacional entre o gado, porcos, carneiros e cabras, os quais causaram grandes danos às plantações de milho indígenas, que não eram protegidas devido à falta de experiência com concorrentes pela subsistência. As medidas tomadas pela população indígena eram muitas vezes ineficazes. O sistema de valor dos conquistadores favorecia o gado. Bois e carneiros eram protegidos pela lei, os costumes e o sentimento castelhanos. As leis que protegiam a pecuária na península Ibérica foram exportadas para o México e permitiam que o gado pastasse em propriedade alheia depois da colheita. E os animais destruidores eram, afinal, propriedade dos vitoriosos; a agricultura era província dos derrotados.
Os animais europeus, assim como a doença, muitas vezes precederam e acompanharam os colonizadores espanhóis; e sua chegada, especialmente no México, transformou e hispanizou a paisagem. Sherbourne Cook argumentou que o gado inicialmente se expandiu até os limites da subsistência, e o resultante excesso de pastejo, através do qual destruíram seus próprios meios de sustento, transformou regiões outrora férteis em terras áridas e semidesertas. O resultado foi uma revolução ecológica, exagerando e completando o processo que o uso intensivo da terra e as vastas populações haviam iniciado no período pré-colombiano. A erosão do solo foi agravada pela introdução do arado europeu e pelo desflorestamento generalizado para suprir a demanda de fabricação de cal e de combustível para as fornalhas usadas para fundir metais preciosos.
O ritmo de redução das populações nativas, segundo cálculos de Borah e Cook, parece ter-se estabilizado por volta de 1565 no planalto e, na região costeira, por volta de 1573. O encolhimento da população indígena continuou até meados do século 17, mas em ritmo muito menor. O ponto baixo da população indígena no México foi por volta de 1620-25, quando, na estimativa de Sherbourne Cook e Borah, o número de indígenas caiu para 730 mil. Noble David Cook situa o ponto mais baixo para o Peru na década de 1620.
O distúrbio biológico e ecológico inexorável resultante da chegada de europeus e africanos, suas doenças e animais, no entanto, com o tempo também minou o sistema de controle imposto pelos conquistadores: o sistema de “encomienda”, cuja base essencial era a maciça força de trabalho indígena. Inicialmente, o sistema de “encomienda” teve um extraordinário sucesso logo após a conquista, sustentando a sociedade urbana espanhola em meio às grandes populações indígenas. Ele também permitiu que os espanhóis no Novo Mundo acumulassem capital com o qual puderam financiar o desenvolvimento nas Américas sem recorrer a credores europeus.
O declínio geral da importância econômica da “encomienda” variou consideravelmente de região para região, em ritmo e extensão, mas a causa fundamental desse recuo foi a ruptura demográfica e ecológica e a contração da população da sociedade ameríndia.
Durante as décadas de 1560 e 1570 a estabilização do índice de declínio populacional entre os ameríndios provocou uma série de ajustes econômicos e administrativos na América espanhola, de importância fundamental para o futuro. A doença e a alteração ecológica também minaram seriamente a hierarquia indígena local necessária para mobilizar as massas indígenas para os senhores espanhóis. Esses desenvolvimentos não foram acontecimentos repentinos que geraram relacionamentos totalmente novos. Foram sobretudo um processo em que os elementos que haviam sido periféricos enquanto existira uma ampla população indígena com o tempo tenderam a tornar-se centrais.
O gradativo ajuste social e econômico ao declínio da população indígena alterou profundamente o relacionamento entre indígenas e europeus no Novo Mundo, modificou os padrões de propriedade da terra, transformou a vida interna social e cultural das comunidades indígenas e influenciou a maneira como a administração real operou em nível local em toda a América espanhola. Foi, de modo geral, um processo que transformou o governo indireto em direto e possibilitou a criação gradativa de uma sociedade multiétnica, mestiça, enraizada nas Américas.
Os espanhóis na América poderiam facilmente ter permanecido como os senhores coloniais europeus na Ásia e na África, mais tarde uma elite estrangeira superficial e imposta; uma classe dominante temporária de forasteiros permanentes. Nessas circunstâncias, quando a população indígena recuperasse a autoconfiança ou a potência imperial européia se enfraquecesse devido a envolvimentos ou declínio, essa presença estrangeira poderia ter sido expulsa, como ocorreu posteriormente com os colonizadores europeus na Ásia e em grande parte da África.
Mas não foi o que aconteceu nas Américas. A peculiar história demográfica do colonialismo europeu no hemisfério ocidental foi criar uma nova sociedade multirracial crioula, permanentemente enraizada no Novo Mundo. Esse resultado extraordinário ocorreu cumulativamente ao longo do tempo e com muitas nuanças regionais e locais, mas as mudanças demográficas que a possibilitaram ocorreram com relativa rapidez.
A catástrofe demográfica que assolou a população indígena teve um impacto imediato sobre as relações dos colonos espanhóis com a terra, algo que teve interesse mínimo ou periférico para eles enquanto existiu uma vasta população indígena.

À medida que a população indígena diminuía, se tornava cada vez mais problemático garantir o suprimento alimentar em base regular



Os espanhóis no México e no Peru tentaram desde o início recriar no hemisfério ocidental um estilo de vida europeu e, para tanto, introduziram trigo, uvas, árvores frutíferas européias. No entanto isso só se tornou uma perspectiva comercialmente viável quando o trabalho indígena deixou de fornecer alimento suficiente para manter os centros urbanos adequadamente abastecidos. Mas, à medida que a população indígena diminuía, se tornava cada vez mais problemático garantir o suprimento alimentar em base regular. No México central, por exemplo, o preço do milho triplicou entre 1520 e 1573, e de 1542 a 1573 o preço do trigo subiu num ritmo ainda mais acelerado. O aumento dos preços dos alimentos, a crescente demanda urbana, a falta de sucesso em persuadir os indígenas a cultivar o trigo (o que não é de surpreender, dada a importância do milho na vida cultural do indígena e o fato de que o rendimento do trigo era substancialmente menor que o do milho), tudo isso tornou necessária e cada vez mais rentável a operação de fazendas de propriedade dos espanhóis diretamente administradas por eles, nos arredores de Lima e da Cidade do México. O problema de garantir uma força de trabalho suficiente para as propriedades espanholas no vale do México enquanto a população indígena encolhia levou as autoridades espanholas a intervir diretamente na distribuição de mão-de-obra coagida. Em 1560, por exemplo, na região da Cidade do México, 2.400 indígenas eram distribuídos semanalmente entre 114 plantadores de trigo espanhóis. Em breve o processo de distribuição, frequentemente baseado em protótipos pré-colombianos e sob uma variedade de nomes (“repartimiento” ou “cuatequil” no México, “mita” no Peru, “mandamiento” na Guatemala e “minga” no Equador), tornou-se um importante meio de recrutamento de trabalho forçado em toda a América espanhola.

Novo ambiente
A transição para a produção de trigo em grande escala no vale do México ocorreu entre 1563 e 1602, e entre 1580 e 1630 também se desenvolveu a produção de trigo em grande escala nas propriedades rurais espanholas. O aumento de empreendimentos agrícolas teve consequências importantes. Ele levou a terra para a propriedade privada. A palavra “hacienda”, anteriormente um termo genérico para “propriedade”, assumiu novo significado na América espanhola, como uma “entidade econômica geradora de produtos agrícolas ou gado para o mercado”. O título da terra era obtido pelos espanhóis por concessão direta (“merced”) de terras “desocupadas” ou por meio de aquisição do cacique ou da comunidade indígena. Quando a terra era ilegalmente usurpada de território indígena, a coroa mais tarde regularizava as invasões através de um pagamento, pelo qual os espanhóis obtinham o título legal (“composición”). Em 1620, um terço do vale do México tinha passado à propriedade de espanhóis, representando mais da metade da terra agrícola utilizável da região. O crescimento da propriedade rural (“hacienda”) na América espanhola levou os indígenas e os espanhóis a um novo relacionamento, colocando o indígena assim empregado num ambiente onde predominavam os costumes europeus. A importância social dessa nova estrutura de relacionamento foi ampla e atraiu muitos dos que haviam saído das comunidades indígenas para um novo ambiente social e econômico. A “hacienda”, assim como a cidade, também forneceu um habitat para a crescente população mestiça de ascendência indo-européia. A “hacienda” distribuía sua força de trabalho de duas maneiras: como uma equipe permanente ligada à propriedade pelo pagamento de salários, que muitas vezes com o tempo se tornava uma forma de servidão por dívida, ou como agricultores de subsistência dispersos, vivendo em pequenas áreas da terra da “hacienda”.

Processo discreto
Embora intensamente cultivados, esses minifúndios não produziam excedente suficiente para evitar que os pequenos agricultores de subsistência buscassem emprego com o fazendeiro. As plantações que eles produziam tinham a vantagem, porém, de aliviar o fazendeiro da despesa de sustentar uma força de trabalho totalmente composta de assalariados. O relacionamento entre a “hacienda” e os agricultores de subsistência era, portanto, simbiótico.
O pequeno agricultor fornecia trabalho extra na época da colheita, e o terreno de subsistência sustentava sua família durante o resto do ano, quando o trabalho era escasso. O fazendeiro ficava livre da despesa de sustentar uma grande mão-de-obra permanente, que em muitos casos teria tornado não-rentável a operação da fazenda. Mesmo quando as fazendas se envolveram numa produção semiindustrial, como na América Central, no processamento de tintura índigo, distribuíram sua terra para meeiros e arrendatários (“colonos”) dessa maneira.


O tributo e o controle do trabalho foram preferidos nos primeiros anos após a conquista, e a “encomienda” não envolvia a propriedade da terra. Mas, com a desastrosa redução da população indígena, essa situação mudou. A propriedade espanhola surgiu assim em resposta à mudança das condições de mercado e refletiu uma mudança de parte dos espanhóis, afastando-se de um sistema de dominação indireto para um de empreendimentos diretamente administrados. A evolução da propriedade da terra espanhola foi um processo discreto, portanto, separado da “encomienda” da geração da conquista. Alguns “encomenderos” podiam estabelecer a propriedade direta da terra nas regiões das quais obtinham tributo ou serviços, é claro. Certamente eles estavam numa posição que permitia fazê-lo.
Mas o processo em geral foi de consolidação de uma presença européia assentada permanentemente no campo e uma ampliação e um aprofundamento da implantação do hispano-americano nas Américas. A propriedade rural espanhola, portanto, surgiu para suprir condições específicas -a necessidade de fornecer produtos para um mercado que o setor indígena não era mais capaz de suprir, e seu desenvolvimento tornou-se possível pela disponibilidade de terras que resultou da ruptura e da contração da população indígena.
Nas regiões de altiplano na América espanhola, do México às Américas Central e do Sul, porém, a população indígena em 1600 ainda era maioria. O que mudou completamente no primeiro século da colonização foi a relação demográfica entre os indígenas e os europeus que se assentaram entre eles.
Os indígenas permaneceram o componente básico da força de trabalho hispano-americana durante todo o período colonial, mas sua vulnerabilidade e exploração aumentaram drasticamente em consequência do declínio demográfico. E, enquanto não se pode minimizar a extensão da desmoralização, ruptura e destruição que assolaram a população indígena das Américas após a conquista, o fato importante foi a sobrevivência da população nativa. A longo prazo, isso não seria menos importante para o futuro do que a trágica história de morte e declínio dos indígenas.


Kenneth Maxwell é historiador inglês e um dos principais brasilianistas da atualidade. É autor de “A Devassa da Devassa” e “Marquês de Pombal – Paradoxo do Iluminismo” (ambos pela ed. Paz e Terra). Escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Texto publicado originalmente em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1108200206.htm acessado em 04/04/2020


CONCEITOS TRABALHADOS NO TEXTO

MITA OU REPARTIMIENTO:

Importante modo de recrutamento de trabalho indígena, assalariado, porém, forçado, usado na América Espanhola.

HHACIENDA:

Latifúndios, gestados por colonos, em terras usurpadas dos indígenas, cuja produção era voltada para o milho e agropecuária, cuja mão de obra era suprida pela Mita.

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