Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 29 abr 2025
O Cemitério dos Pretos Novos, localizado na atual Rua Pedro Ernesto, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, representa um dos capítulos mais dolorosos — e, por muito tempo, esquecidos — da história brasileira. Entre 1769 e 1830, o local serviu como destino final de milhares de africanos escravizados que morriam logo após o desembarque. Este artigo baseia-se em diversas fontes históricas, arqueológicas e acadêmicas, com destaque para a obra À Flor da Terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro (PEREIRA, 2014), referência fundamental para o entendimento deste sítio histórico.
Antes da instalação do cemitério, a área da atual Gamboa era um espaço de transição entre o núcleo urbano do Rio colonial e o mar. Conforme destaca Pereira (2014), tratava-se de um trecho arenoso, sem edificações de relevo, usado como passagem para tropas e atividades de pesca. A região estava além dos limites formais da cidade até meados do século XVIII.
Com a transferência do mercado de escravos para a região do Valongo em 1774, ordenada pelo Marquês do Lavradio, o cenário mudou radicalmente. Trapiches, galpões e armazéns surgiram para atender ao tráfico negreiro. Entre essas estruturas improvisadas, surgiu também o cemitério destinado aos “pretos novos” — os africanos recém-desembarcados que não resistiam às condições desumanas da travessia e da quarentena (PEREIRA, 2014).
O Porto do Valongo tornou-se o principal ponto de entrada de africanos escravizados nas Américas. Estima-se que milhões de pessoas passaram por ali. Conforme registra Pereira (2014), o volume de africanos era tão intenso que gerava um fluxo contínuo de corpos para o cemitério, com alta mortalidade entre crianças e adolescentes.
A expressão “pretos novos” aparece reiteradamente nos registros paroquiais analisados, marcando o estatuto mercantil dos indivíduos antes mesmo de serem vendidos. O local, de intensa atividade comercial, refletia a brutalidade da escravidão em sua forma mais crua.
Em 1769, o Vice-Rei do Brasil autorizou oficialmente a criação do Cemitério dos Pretos Novos. Segundo Pereira (2014), o local não foi concebido como um campo-santo tradicional, mas como um espaço de descarte rápido de cadáveres, sem túmulos individualizados, sem rituais cristãos, sem dignidade.
Corpos eram atirados em valas rasas ou queimados para dar lugar a novas remessas de mortos. A ausência de cerimônias revela o grau extremo de desumanização a que eram submetidos aqueles seres humanos (PEREIRA, 2014).
De acordo com os levantamentos de Pereira (2014), entre 1824 e 1830, 6.122 sepultamentos foram registrados, número seguramente inferior ao real. Os restos encontrados no sítio arqueológico indicam uma predominância de crianças, adolescentes e jovens adultos, o que expõe a vulnerabilidade dos recém-chegados.
As condições do cemitério eram brutais: corpos deixados expostos, enterrados superficialmente ou queimados. As chuvas frequentemente desenterravam ossos, gerando escândalo público e problemas sanitários. Esse tratamento cruel contrastava com os princípios religiosos professados pela sociedade colonial (PEREIRA, 2014).
Em 1830, o cemitério foi desativado. As causas foram diversas: o incômodo sanitário, a pressão dos moradores e as novas exigências diplomáticas internacionais, com a assinatura do tratado anti-tráfico entre Brasil e Inglaterra (PEREIRA, 2014).
Logo após seu fechamento, a região foi objeto de intensos aterros, obras e mudanças urbanísticas. A área passou a abrigar trapiches, armazéns e posteriormente prédios residenciais. Durante o Segundo Reinado, com a construção do Cais da Imperatriz, as últimas lembranças visíveis do antigo cemitério foram soterradas sob novas camadas de modernização urbana.
Pereira (2014) ressalta que esse processo de transformação física foi acompanhado de uma transformação simbólica: a tentativa deliberada de apagar a memória da escravidão do espaço público carioca.
A rua onde se situava o cemitério passou a ser conhecida como Rua do Cemitério. Posteriormente, em 1853, foi rebatizada como Rua da Harmonia — uma escolha não inocente, conforme observa Pereira (2014), já que buscava dissociar a área de sua história traumática.
Em 1946, já no século XX, a rua recebeu o nome de Rua Pedro Ernesto, homenagem ao ex-prefeito do Rio de Janeiro. Cada mudança toponímica contribuiu para ocultar ainda mais a memória do Cemitério dos Pretos Novos, reforçando a invisibilidade histórica dos africanos ali sepultados.
O antigo cemitério permaneceu esquecido até 1996, quando obras particulares revelaram a presença de ossadas humanas durante reformas em uma residência da Rua Pedro Ernesto. A descoberta levou à criação do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), que, como destaca Pereira (2014), cumpre hoje um papel fundamental na preservação da memória e na valorização da história afro-brasileira.
O IPN abriga o Memorial dos Pretos Novos, um espaço de educação, pesquisa e memória. Desde então, o sítio passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana e contribuiu para a candidatura bem-sucedida do Cais do Valongo como Patrimônio Mundial da Humanidade, reconhecido pela UNESCO.
A reemergência do Cemitério dos Pretos Novos marca não apenas a redescoberta de um sítio arqueológico, mas a possibilidade de o Brasil encarar seu passado com a coragem necessária para construir um futuro mais justo.
As pesquisas sobre o Cemitério dos Pretos Novos continuam a avançar. A análise minuciosa dos registros da Freguesia de Santa Rita, cruzada com achados arqueológicos recentes e novas leituras demográficas, tem revelado tendências inéditas sobre o perfil etário, a frequência de navios negreiros por período e a organização espacial das valas comuns.
Dados preliminares apontam uma predominância ainda maior de crianças e adolescentes entre os sepultados, especialmente entre os anos de 1812 e 1818, o que reforça o caráter genocida do tráfico em sua fase terminal. Estes elementos estão sendo sistematizados e serão apresentados em uma próxima publicação acadêmica.
Essa nova etapa da pesquisa reafirma um compromisso que não é apenas historiográfico, mas ético: dar nome, corpo e voz àqueles que, no silêncio da terra, esperam ser lembrados.
O Cemitério dos Pretos Novos é símbolo do sofrimento, da desumanização e também da resistência dos povos africanos trazidos à força para o Brasil. Sua história nos lembra que as raízes do Brasil moderno estão profundamente entrelaçadas com a dor da escravidão, mas também com a força e a perseverança dos que sobreviveram.
A redescoberta desse local, e o trabalho de preservação liderado por instituições como o IPN e por pesquisadores como Júlio César Medeiros da Silva Pereira, oferecem uma oportunidade histórica de memória, reconhecimento e transformação.
A história, como a flor que brota da terra marcada pela dor, segue viva — e deve ser contada.
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2014.
LOPES, Nei. O Rio Negro: memória e identidade. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro (1790-1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
GUEDES, Roberto. Pretos Novos: arqueologia histórica e memória da escravidão no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPHAN, 2011.
UNESCO. Cais do Valongo – Patrimônio Mundial. Paris: UNESCO, 2017.
Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 22 fev 2025
Hoje foi ao ar, no canal da @oficialmangueira no YouTube, a entrevista em que compartilho a emoção de ver meu livro À Flor da Terra: O Cemitério dos Pretos Novos ganhar vida no enredo do Carnaval 2025! 🎭✨
O Cemitério dos Pretos Novos é mais do que um registro de dor — é um território sagrado da memória africana no Brasil. Ali, onde tantos corpos foram sepultados sem voz, a cultura Banto resiste em cada fragmento, revelando histórias de luta, espiritualidade e ancestralidade. Transformar essa história em samba é dar voz ao que ficou à flor da terra, permitindo que a Sapucaí se torne palco de uma profunda reflexão sobre memória e resistência.
Meu sincero agradecimento à Mangueira, que mais uma vez mostra seu compromisso com as histórias invisibilizadas, e ao talentoso carnavalesco @sidney_franca , cuja sensibilidade e criatividade trouxeram essa narrativa à luz e deu vida a um enrredo fantástico que homenageia a cultura banto de forma magistral.
Confira a entrevista completa no YouTube pelo link a baixo:
Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 03 nov 2024
A história do Brasil está marcada pela resistência e pela luta das populações afrodescendentes. Durante o mês da Consciência Negra, é fundamental trazer à tona memórias de lugares que simbolizam essa trajetória de força e perseverança, como o Cais do Valongo e a Pequena África. Esses locais representam capítulos dolorosos, mas essenciais, de nossa história e são cruciais para a construção da identidade afro-brasileira. A série “Ainda à Flor da Terra: do Valongo à Pequena África, memórias, resistência e legado” busca resgatar essa história, reforçando o compromisso com o reconhecimento e a valorização dessas memórias.
O Valongo e a Pequena África são símbolos da resistência e da resiliência da população negra no Brasil. O Valongo, principal porto de desembarque de africanos escravizados no Brasil, e a Pequena África, um centro cultural e social vibrante que surgiu na região do Valongo, conta histórias que moldaram a formação da identidade afro-brasileira. Conhecer esses locais é essencial para compreendermos o impacto do passado escravocrata e a luta pela igualdade que ainda persiste. Neste artigo, exploraremos a importância histórica e cultural do Valongo e da Pequena África, discutindo como esses lugares representam não apenas marcos físicos, mas também símbolos de resistência.
O que foi o Valongo?
O Valongo, localizado no Rio de Janeiro, foi o principal ponto de desembarque de africanos escravizados no Brasil, funcionando entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Estima-se que milhoes de africanos chegaram ao Brasil através do Valongo, um número que representa aproximadamente 60% de todos os africanos escravizados trazidos ao país. Esse local serviu como palco de sofrimento, onde os seres humanos eram tratados como bens e separados de suas famílias, línguas e culturas.
O Cemitério dos Pretos Novos
O Cemitério dos Pretos Novos, localizado na região do Valongo, é um marco trágico da escravidão. Inaugurado no século XVIII, o cemitério foi o local de sepultamento de milhares de africanos recém-chegados que não resistiam às condições precárias da travessia e da escravidão. Muitos foram enterrados sem identificação e sem rituais fúnebres, revelando a brutalidade do sistema escravocrata. A presença do cemitério, tema central do meu livro À Flor da Terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro, é um lembrete do sofrimento e da resiliência da população afro-brasileira.
A Pequena África
Com o passar do tempo, a área ao redor do Valongo tornou-se um centro cultural conhecido como Pequena África. Nessa região, africanos livres e seus descendentes realizaram um espaço onde as tradições africanas encontraram um solo fértil para florescer e se misturar com elementos das culturas indígenas e europeias. A Pequena África tornou-se famosa pela sua diversidade cultural, abrigando manifestações de música, dança e culinária que definem a cultura afro-brasileira até hoje.
Impacto Social e Econômico
O Valongo foi um dos pilares da economia do Rio de Janeiro colonial, mas, ao mesmo tempo, moldou profundamente a demografia da cidade, contribuindo para a formação de uma comunidade afro-brasileira vibrante. A presença negra transformou o ambiente cultural da cidade, influenciando a sociedade carioca e brasileira de forma ampla.
Memória Histórica
O Valongo é um símbolo da resistência e da luta por dignidade. Ao preservarmos essa memória, reforçamos a necessidade de refletir sobre a história da escravidão e as desigualdades que ela perpetuou. Para além do Brasil, o Cais do Valongo é um marco da diáspora africana, e seu reconhecimento como Patrimônio Mundial pela UNESCO em 2017 é uma homenagem à luta e à resiliência dos povos africanos e seus descendentes.
Patrimônio Cultural
O título de Patrimônio Mundial da UNESCO conferido ao Cais do Valongo destaca sua relevância para a memória coletiva da diáspora africana. Esse reconhecimento não é apenas simbólico, mas também uma forma de conscientizar sobre a importância de preservar locais históricos que carregam as marcas do sofrimento e da luta das populações negras.
O Valongo e a Pequena África representam muito mais do que apenas pontos geográficos. Eles são testemunhas da trajetória de resistência e força da população negra no Brasil. Ao reconhecer e valorizar esses locais, estamos contribuindo para a construção de uma identidade afro-brasileira que honra a memória dos antepassados e confirma as influências africanas na formação do Brasil. Mais do que lugares físicos, o Valongo e a Pequena África simbolizam uma luta contínua por direitos e dignidade, refletindo uma complexa história de escravidão e seu impacto em nossa sociedade.
Neste da Consciência Negra, revisitar e valorizar esses marcos é fundamental para lembrar que a história da escravidão não deve ser esquecida, mas sim estudos e mês estudados para que possamos caminhar rumo a um futuro mais justo e igualitário.
Postado por MEDEIROS DA SILVA PEREIRA em 24 Maio 2023
Na segunda aula do curso de extensão “A saga dos pretos novos”, mergulharemos profundamente na análise do tráfico atlântico de escravos, focando especificamente nas experiências e nas condições enfrentadas por homens e mulheres nesse contexto histórico. Abordaremos a temática sob a ótica da desigualdade de gênero, destacando as distintas realidades vivenciadas por cada um dos sexos durante essa terrível época.
O tráfico atlântico de escravos foi um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade, no qual milhões de indivíduos foram capturados em terras africanas e submetidos a um destino de exploração, violência e sofrimento. No entanto, é importante compreender que homens e mulheres enfrentaram diferentes experiências dentro desse terrível sistema.
Durante a aula, exploraremos como os homens escravizados eram frequentemente selecionados e tratados de maneira distinta das mulheres. Enquanto os homens eram vistos como força de trabalho braçal, destinados principalmente a trabalhos pesados nas plantações, as mulheres eram frequentemente exploradas também para o trabalho doméstico e sexual. Examinaremos as condições vivenciadas por ambos os sexos, destacando as formas de violência, as doenças, a falta de higiene e os impactos psicológicos decorrentes desse sistema desumano.
Além disso, discutiremos as estratégias de resistência adotadas por homens e mulheres escravizados. Veremos como, apesar das adversidades, esses indivíduos encontraram maneiras de preservar suas culturas, recriar formas de sociabilidade e resistir às opressões impostas. Abordaremos também as diferentes percepções de masculinidade e feminilidade dentro desse contexto, e como essas noções influenciaram a experiência de homens e mulheres escravizados.
Nesta aula, convidamos você a refletir sobre as diferenças de gênero no tráfico atlântico de escravos, reconhecendo a necessidade de uma análise mais aprofundada das experiências vividas por homens e mulheres. Ao compreendermos as nuances dessas realidades, poderemos construir uma visão mais completa e sensível do passado, contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária no presente.
Esperamos que você se junte a nós nessa jornada de conhecimento e reflexão, na qual iremos desvendar as complexidades da saga dos pretos novos e promover o resgate histórico de vozes silenciadas por tanto tempo. Prepare-se para uma aula enriquecedora e provocativa, que certamente ampliará sua compreensão sobre o tráfico atlântico de escravos e suas repercussões.